O feijão e o sonho em tempos de redes

Nenhum problema em curtir o que o universo digital pode nos oferecer para atenuar as agruras do dia a dia. Só vale ter claro em mente os limites entre o real e o sugerido ou imaginado

 

Você certamente já ouviu ou leu muitas vezes algo que já virou lugar comum sobre os tempos fugazes da vida nas redes: a grama do vizinho é sempre mais verde.

 

Por quase ninguém fazer questão alguma de compartilhar derrotas, dores e tristezas, o que mais rola é um festival de pessoas sorridentes, que estão 24×7 em praias ensolaradas, restaurantes bacanas de pratos saborosos, lugares incríveis dos mais diversos. E, claro, sempre com o melhor sorriso, o melhor penteado, a melhor maquiagem, as melhores roupas…

 

Virou uma dimensão paralela em que ninguém fica com cara amassada ou de sono, ninguém usa moletom velho e meia – e bafo é abstração ou coisa de gente que não consegue andar a 10 cm do chão.

 

A discussão sobre os efeitos deletérios disso sobre jovens (ou sobre qualquer pessoa, na verdade) está na pauta do dia. Afinal, quem não gostaria de viver dentro dessa matrix? E, para conseguir, tenta alcançar o impossível.

 

A figura de linguagem criada por Orígenes Lessa no título de seu romance O Feijão e o Sonho traduz essa dualidade desde 1938 (bem antes de existirem as redes, mas de já haver os sonhadores e os que desejam o que parece ser a vida dos outros – e, nessa, descuidam do feijão do cotidiano e da vida real).

 

Se fosse apenas a ilusão da perfeição da vida alheia, estava bom. Mas há outros aspectos absolutamente desagregadores nessas novas rotinas. Um deles é o de acharmos realmente que temos aquela quantidade de “amigos” que as redes nos fazem crer.

 

Faço, então, uma pergunta: quantas dessas pessoas você já viu ao vivo? E, se já encontrou tête-à-tête, quando foi a última vez que isso aconteceu? Durante mais de um ano e nove meses de pandemia, quantas vezes ligou, falou ou trocou mensagens para dar sinal de vida e saber delas (ou elas de você)? E mais: qual foi a última vez que falou com a maioria desses “amigos” no aniversário?

 

“Ah, mas você não entende que esse é o ‘novo normal’ dos novos tempos?” Concordo: pode ser um problema receber um monte de telefonemas no dia do seu aniversário. 

 

Então, pergunto outras coisas: você sabe o nome dos pais dos seus amigos? Sabe quantos irmãos têm? No que e onde trabalham? Sabe o nome dos filhos e dos parceiros? Onde moram?

 

Nenhum crime nisso – a não ser que saibamos identificar os novos significados para o feijão e o sonho (ou a reconhecer os sinais desses tempos de relações líquidas, como definiu Zygmunt Mauman em seu livro Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos).    

 

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