‘O Dilema das Redes’: muito antes da internet, o produto já era você

“Acho que sou o único ser humano que assistiu ao filme e ficou entediado”, afirma o professor Murilo Moreno em seu novo texto no blog Papo Reto

 

Você sabe o que catarse significa? Em psicanálise, ele quer dizer que você se liberta de uma situação que lhe aflige ou oprime através de uma ação qualquer. Penso nisso o tempo todo quando ouço ou leio algo a respeito do novo sucesso da Netflix, o documentário O Dilema das Redes.


Acho que sou o único ser humano que assistiu ao filme e ficou entediado. Não me entenda errado. O problema citado no documentário é real, é sério, e precisa ser endereçado. Mas o meu medo é que o efeito seja exatamente o oposto. Você vê o documentário, se vê fazendo um tanto das ações que aparecem nos depoimentos, descobre que está sendo manipulado, fica puto com a situação, desliga as notificações, desinstala alguns aplicativos, publica algo nas redes mostrando o seu desprezo e depois entra numa fase de abstinência, como todo viciado ao largar uma droga. Aos poucos, o tempo vai passando, você se permite uma ou outra interação nas redes sociais e não vai dar nem um ano e estará mergulhado nos posts e notificações como se nada tivesse acontecido.


A culpa, como por milagre, terá passado. Agora você é um ser consciente. Não fica o tempo todo nas redes não. Ou pelo menos é isso que você fala pra você mesmo. E de Instagram em Instagram, de Facebook em Facebook, você volta aos velhos hábitos sem que perceba. E como o próprio programa mostra, você estará se enganando que fica pouco tempo conectado e a vida estará passando enquanto você pula de um post para outro.


Essa estória de manipulação não é nova. O Dilema fala de como as redes sociais vendem a sua atenção. “Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”. A famosa frase do jornalista Andy Lewis aparece na tela. Mas qual a novidade nisso? Cresci assistindo televisão e o que eles faziam (e fazem) é exatamente o mesmo. Vendem a nossa atenção à tela para que os anunciantes possam nos convencer a comprar seus produtos. Que aliás é exatamente o que as rádios fazem. Só que querem nos prender pelos ouvidos. Nada de novo. A grande diferença é que você e eu éramos uma estatística. Agora somos seres com endereço e vontade. Estatísticas não consomem. Indivíduos sim.


Os meios de comunicação cresceram através da capacidade de atrair sua atenção e vende-la para os anunciantes. Alguns meios dividem os custos entre o leitor ou espectador e as empresas. Jornais e revistas não são de graça. Mas graças aos anúncios têm preços acessíveis a uma maior porção da população. TV’s e rádios transferem 100% dos custos para os anunciantes. É só uma questão de modelo de negócios. Mas todos eles estão no mundo para lucrar com a capacidade de vender sua atenção.


Aí surgiu a internet. Em poucas décadas, criou-se a ilusão de que bom conteúdo seria gratuito. Os primeiros a sofrer foram os jornais e revistas que passaram a colocar seus conteúdos gratuitamente na internet, desejosos de atraírem audiência. Os leitores dos exemplares físicos pagariam pelo conteúdo on-line. Mas o consumidor é um só. E não é burro. Acostumou-se com o gratuito e largou os meios pagos. E os veículos de comunicação começaram a fechar sem consumidores para pagar as contas.


Com isso, apareceu a necessidade de fazer dinheiro. Monetizar virou a palavra do momento. Toda startup que se preza sempre pensa como ganhar dinheiro com o tráfego de usuários que gera. É o único meio de se perpetuar. De nada adianta uma boa ideia que não pague pela sua própria existência. Está fadada ao fracasso. Portanto, ou se vende um produto para o cliente, como fazem os e-commerce e os aplicativos como o Uber, ou se vende a atenção dos usuários para os anunciantes, como aprenderam a fazer as redes sociais. Simples assim.


O que vem agora não sei. Como toda novidade que surge e cresce desordenadamente, a sociedade como um todo deve controlar e evitar os excessos. Novas leis irão surgir. Movimentos acontecerão. O Dilema das Redes talvez seja só o começo de um. Mas não me iludo. O maior risco de programas como esse é acalmarem minha mente culpada e, com isso, aumentarem ainda mais aquilo que querem combater.


O próprio documentário brinca no seu final, ao colocar na tela “Siga-nos nas redes sociais”. Elas são uma realidade que veio para ficar. Como tudo na vida, é sua responsabilidade saber como lidar com elas.

 

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