Jornalista que produziu o doc Libertar – Relatos de Guaribanas do Bolsa Família conta o que ela e seus colegas aprenderam ouvindo histórias de cinco mulheres beneficiadas pelo programa na cidade de Guaribas, sertão do Piauí
“Seis horas dentro de um avião e outras dez dirigindo em uma estrada de condições precárias: terra, lamaçal, pedras gigantescas, crateras e bichos atravessando sem qualquer tipo de iluminação”. Esse foi o caminho percorrido pelos estudantes Renato Bonfim, Catharina Obeid e Manuela Rached de São Paulo até Guaribas, sertão do Piauí, primeira cidade a receber o Bolsa Família. Lá eles conheceram cinco mulheres beneficiadas pelo programa e registraram suas histórias no documentário Libertar – Relatos de Guaribanas do Bolsa Família, trabalho de conclusão de curso orientado pela professora Heidy Vargas, apresentado em 2016 na ESPM.
Para entender os desafios dessa jornada e tudo o que os jornalistas aprenderam, o #TMJ conversou com Catharina Obeid. “Foi um choque de realidade, daqueles que nunca mais vamos esquecer”, afirma a jornalista. “Até hoje é fruto de muito orgulho, de algumas de nossas melhores lembranças do tempo da faculdade e uma das maiores lições de toda nossas vidas.”
Veja a seguir a entrevista. Ao final do texto, você confere o documentário na íntegra.
Por que vocês decidiram fazer um trabalho sobre o Bolsa Família?
Durante toda a faculdade nossos trabalhos giravam em torno de questões humanas e sociais. Perto do momento em que tivemos que decidir o tema do PGJ [trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da ESPM] fomos apresentados a ideia de fazer algo em torno do programa pela professora Heidy, que já queríamos que fosse nossa orientadora. Foi amor à primeira vista, posso dizer. Queríamos um tema que nos acrescentasse como alunos e seres humanos, e a oportunidade de visitar presencialmente a primeira cidade a receber o Bolsa Família acabou sendo muito mais que isso. Até hoje é fruto de muito orgulho, de algumas de nossas melhores lembranças do tempo da faculdade e uma das maiores lições de toda nossas vidas.
“Foi incrível, mas de uma dificuldade tamanha”
Como foi gravar em Guaribas?
Foi incrível, mas de uma dificuldade tamanha. Foram seis horas dentro de um avião e outras dez dirigindo em uma estrada de condições precárias: terra, lamaçal, pedras gigantescas, crateras e bichos atravessando sem qualquer tipo de iluminação. Chegamos lá com uma sugestão de “hotel” (se é que dá para chamar assim) e apenas isso. Tentamos contato com as pessoas da cidade por telefone nos três meses que antecederam a viagem, mas descobrimos que era impossível. Não havia sinal de celular, a internet era restrita a um único ponto da cidade e ninguém atendia nossos telefonemas. Fomos com a cara e a coragem, prontos para enfrentar o que viesse. Assim foi feito. Chegamos lá, andamos batemos de porta em porta, conversamos com muita gente, pedimos indicações e fomos super bem recebidos.
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“Percebemos que teríamos que mudar bruscamente nossa fala se quiséssemos nos aproximar delas”
Qual foi a maior dificuldade de vocês?
Diferente do que eu imaginava, nossa principal dificuldade não foi relacionada a enorme quantidade de equipamentos que tivemos que carregar, montar e nos preocupar. Foi, na verdade, uma coisa muito mais simples: a linguagem. Por termos estudado o assunto, lido livros e feito uma pesquisa acadêmica bastante abrangente, chegamos com um vocabulário formal, com palavras que não faziam parte do cotidiano delas. Termos técnicos como “empoderamento” e “poder de compra”. Logo na primeira entrevista já percebemos que teríamos que mudar bruscamente nossa fala se quiséssemos nos aproximar delas. Foi o que fizemos.
“Na época, a cidade oferecia apenas 16 empregos formais”
O que vocês aprenderam com as mulheres ouvidas nesse projeto?
Duas percepções que causaram um impacto imenso em mim. A primeira é a importância da religião na vida dessas pessoas, mais precisamente da fé. Para entender basta se imaginar em uma região afastada, com acesso apenas por uma estrada de terra (que nem sempre é trafegável) e sem oportunidade alguma de conseguir um emprego, uma garantia de renda fixa. Na época, a cidade oferecia apenas 16 empregos formais. Já a segunda é justamente a consequência de tamanha fé em uma situação como essa: perceber a felicidade genuína (no brilho do olhar e no sorriso tímido que insiste em aparecer no canto da boca) em poder gastar esses cento e poucos reais na saúde, educação e alimentação de seus filhos. Essas mulheres com quem conversamos são também mães que estão realizando seu maior sonho: dar para seus filhos um futuro melhor do que o que elas tiveram. Um fado. Um destino.
O Bolsa Família é um dos poucos programas de gestões anteriores que não está sendo ameaçado por mudanças de governo. Ao que você credita isso?
Ainda, né, mas temos apenas pouco mais de seis meses de governo. Acho que é cedo demais para comemorar esse fato, principalmente pelo fato do presidente estar afirmando e reafirmando que não há fome no Brasil, contrariando números e, muito pior que isso, ignorando a história de milhões de brasileiros que vivem ou viveram na miséria como as mulheres que conhecemos.
Imagino que vocês vieram de uma realidade bem diferente das pessoas que ouviram neste documentário. Foi um choque de realidade para vocês?
Foi sim um choque de realidade, daqueles que nunca mais vamos esquecer. Daqueles que lembramos todas as vezes que achamos que temos um problema, mas também toda vez que nos deparamos com uma opinião contrária ao programa Bolsa Família.
Vocês ainda mantêm contato com as mulheres que entrevistaram?
Temos uma delas no Facebook e de tempos em tempos perguntamos como ela e seu filho estão. Infelizmente não foi muito além disso e não é sempre que ela responde. Quem sabe não vamos para lá de novo, nos próximos anos, conferir de perto e rever as amizades que fizemos. Vontade não nos falta.