A arte não deve ser consumida em 2x

Acelerar um conteúdo audiovisual tem a sua utilidade, mas pausas e os momentos de calmaria têm o seu valor e o seu motivo em séries, filmes e documentários

 

Por FelipeRAG

 

Um dia, as plataformas de vídeo apareceram com a opção de assistir aos vídeos em velocidade acelerada. Na manhã seguinte, foi a vez da Netflix e outros serviços de streaming amanhecerem com a mesma opção. E isso não se deu por vontade própria das empresas, como se existissem apenas pessoas que assistem aos vídeos em 2x trabalhando por lá. Elas reagiram aos estímulos e às indicações que seus consumidores deram de que consumir conteúdo em velocidade acelerada era um desejo comum.

 

Acelerar um conteúdo audiovisual tem a sua utilidade. Enquanto demoraríamos 10 minutos para assistir a um determinado vídeo, levaremos 7 minutos e meio se colocarmos na velocidade 1,5x. Parece tentador, certo? Afinal, teremos 2 minutos e 30 livres, para fazermos o que quisermos, podendo assistir a novos vídeos e séries, colocar os estudos em dia, terminar aquele relatório do estágio para ontem e, por fim, descansar porque a semana está sendo corrida e estamos sem tempo. Pois é… Mas exatamente aqui pode se encontrar uma armadilha.

 

Ferramenta de modificação de velocidade de vídeos do YouTube
Ferramenta de modificação de velocidade de vídeos do YouTube Foto: Reprodução

 

Temos a sensação de que estamos sem tempo. Historicamente falando, sempre tivemos a sensação de que estamos sem tempo. Em uma sociedade pautada pelas plataformas midiáticas e pela necessidade de um dinamismo constante, essa percepção se torna ainda mais forte – e é esse o perigo. Tomo a liberdade de cravar que não mudaria nada, no mundo atual, termos mais 5 horas em cada dia. Reclamaríamos na mesma intensidade, afinal, se a cada minuto são publicadas cerca de 70 horas de conteúdo no YouTube, como poderíamos ficar por dentro do que queremos com só 29 horas diárias?

 

Essa síndrome de Alexander Hamilton que precisa escrever 51 artigos da Constituição estadunidense em um curto período de tempo parece ter batido com força nas mídias sociais. A síndrome de FOMO (fear of missing out) é uma patologia psicológica que realmente se proliferou bastante nas redes, já que acreditamos que atinja cerca de dois terços dos usuários em todo o mundo. Partindo do ponto que 4,6 bilhões de pessoas estão presentes e ativas nas redes sociais, o medo de ficar de fora do que está acontecendo no mundo digital já é uma pandemia igualmente destrutiva e silenciosa.

 

Voltando ao primeiro exemplo, o daqueles 2 minutos e meio que ganhamos para fazer o que quisermos, podemos identificar mais um ponto em que a utilidade é atribuída – e esse é um ainda mais subjetivo.

 

Ao acelerar uma vídeo-aula, cujo objetivo é absorver um aprendizado específico sobre um determinado tema, o aluno pode ter conseguido anotar o que anotaria no tempo original, podendo ter cumprido com a utilidade pré-determinada do conteúdo que acabou de assistir em menos tempo. Ficamos com a problemática da ansiedade e da síndrome de FOMO, mas, no quesito da finalidade, não houve alteração. O problema é quando falamos sobre filmes, séries e arte de forma geral.

 

Como os interlúdios no teatro e na música erudita, as pausas e os momentos de calmaria têm o seu valor e o seu motivo. Foram pensados para estarem lá. As icônicas três páginas que Tolkien levou para descrever o cair de uma folha da árvore foram pensadas para levar exatamente três páginas. Poderia ser em um parágrafo? Poderia. Mas não foi, por escolha do autor, fazendo com que a obra seja o que ela é. Com um exemplo menos radical, visitemos Hayao Miyazaki, criador e diretor do Studio Ghibli.

 

Uma das suas características mais fortes enquanto diretor é o uso do 間 (Ma), podendo ser interpretado como silêncio ou vazio. Seja em Chihiro, Totoro ou Castelo Animado, os filmes de Miyazaki possuem momentos icônicos em que as personagens não dialogam, não praticam nenhuma ação e nenhum evento impactante no roteiro acontece. Pelo pensamento utilitarista, seriam momentos inúteis que poderiam ser acelerados.

 

Entretanto, segundo o próprio diretor, o 間 é exatamente o momento em que entramos em contato com nós mesmos; com o nosso interior. São momentos, de acordo com o Miyazaki, imprescindíveis para experienciar uma obra de arte subjetiva, como são os filmes, as séries, as músicas e as animações.

 

A Viagem de Chihiro Foto: Reprodução

 

O símbolo de 間, quando dissecado, é a união dos símbolos que representam porta e Sol no idioma japonês. Ou seja, quando aceleramos A Viagem de Chihiro, seja em 2x ou 1,25x, estamos tirando parte de sua essência e de seu propósito. Se 間 significa entrar em contato com o nosso interior, abrindo as portas para receber a luz do Sol, evitar o contato com o vazio de uma obra procurando apenas a utilidade que aquele momento teria seria como nos fecharmos para nós mesmos.

 

A ideia de não consumir tudo o que queremos pode assustar, mas, se já não consumiremos de qualquer jeito, que pelo menos estejamos presentes nas obras que formos assistir. Deixemos um pouco de lado a nossa síndrome de Alexander Hamilton da Vila Mariana, optando pelo 間 do bom velhinho dos filmes de animação.

 

“A realidade é para as pessoas que não têm imaginação.”

 

 

Conteúdo originalmente publicado no Newronio, blog escrito pelos alunos do Arenas ESPM, agência experimental do curso de Publicidade e Propaganda da ESPM.

 

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