O prolongado tempo de distanciamento em casa produziu um novo fenômeno: a vida perfeita entre quatro paredes exibida nas redes sociais
Atire a primeira pedra quem não se sentiu meio acabrunhado diante de posts de amigos, colegas e conhecidos que passaram pelo isolamento em casa em modo “disneylândia”…
Afinal, a vida para essas pessoas nunca pareceu tão interessante: lives mostrando o preparo de banquetes gastronômicos com iguarias deliciosas, fotos de momentos de meditação, as capas dos livros que estão lendo, os filmes e séries que viram, novos hobbies (tocar instrumento, descobrir a ginástica xyz). A lista é imensa. E com um detalhe: todo mundo está sempre bonito, sorridente e arrumadinho “no úrtimo”.
Por outro lado, atire uma segunda pedra quem não se sentiu a pessoa mais feliz do mundo diante de quem adotou postura antípoda: a vida virou um inferno, todo mundo descabelado 24×7, de mau humor, reclamando da faxina, do trabalho, de cozinhas, de limpar, de estar com a família, de estar sozinho, da preguiça… A lista também é imensa.
Longe de mim duvidar do que uns ou outros publicam sobre sua própria vida. E muito menos censurar ou controlar o que publicam. E também não vejo problema algum em criar narrativas para a própria vida – segundo o objetivo que se busca e se isso apraz a pessoa.
Uns querem provar (para si mesmos e para os outros) que se saíram “muito bem, obrigado” na pandemia – com uma perfeição de fazer inveja a comercial de margarina. Outros querem sublinhar qualquer motivo para poder reclamar, externar o amargor que está sendo a experiência.
Ambos, no final das contas, só querem a mesma coisa: criar uma versão prêt-à-porter dessa experiência – e que ficará para sempre registrada em um diário. Mas com uma diferença: nos diários, as pessoas confessam tudo de modo aberto e sincero coisas para si mesmas, confiando que ninguém mais vai conhecer seus mais recônditos segredos (sejam frustrações, desejos etc.); já nas redes o que se busca é exatamente o contrário: eu quero mesmo é “compartilhar” (mostrar, ostentar, me afirmar etc. podem ser verbos mais adequados). E, para isso, preciso de um tempero extra: construir minhas memórias de maneira perfeita, no modo “o que vale não é o fato, mas a versão”. Seja lá qual for a maneira como eu quero que essas lembranças soem no futuro.
Se a memória é traiçoeira, criamos um jeito de ela assim ser de nascença…